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Helena Theodoro: “rádio pública não tem dono, tem que ser plural”

No mês em que completa o seu centenário, a Rádio MEC foi o tema central de uma audiência pública realizada na última quarta-feira (12) na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Durante o evento, que debateu o resgate do protagonismo da emissora e a busca pela inovação tecnológica, a radialista aposentada Helena Theodoro foi homenageada. A iniciativa reconhece as mais de três décadas que ela dedicou à Rádio MEC.

A carreira de radialista de Helena é marcada por sua múltipla formação. Natural do Rio, ela é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com graduações em Direito e em Pedagogia, mestrado em Educação, doutorado em Filosofia e pós-doutorado em História comparada. É referência no país na pesquisa em história e cultura afro-brasileira.

Sua passagem na Rádio MEC, iniciada aos 15 anos de idade, é marcada por programas como o “Samba na Palma da Mão”, o “Faixa Autoral” e o “Origens”. Ela também coordenou nacionalmente o Projeto Minerva. Instituído pelo regime militar e produzido pela Rádio MEC, ele era um programa radiofônico de educação a distância de transmissão obrigatória pelas demais emissoras.

Considerada a primeira emissora do país, a Rádio MEC nasceu como Rádio Sociedade, criada em 1923 por Edgard Roquette-Pinto e Henrique Morize. Doada em 1936 ao Ministério da Educação e Saúde Pública (posteriormente Ministério da Educação e Cultura – MEC), a emissora acabaria sendo rebatizada como Rádio MEC. Mais tarde, a sigla deixaria de ser uma referência à pasta, passando a significar música, educação e cultura, considerados os três pilares da sua programação.

Nessa entrevista concedida à Agência Brasil, Helena Theodoro conta detalhes da sua trajetória na Rádio MEC e discute a importância da emissora. 

Como foi sua entrada na Rádio MEC em 1958? 

Um repórter do Diário de Notícias, chamado Pedro Jorge, tinha um projeto que ele chamava de Estudantes do Ano, onde aqueles jovens negros que se destacavam ganhavam uma fotografia no jornal para estimular os outros a estudar. Eu estava estudando no Conservatório de Música, fazendo piano e harmonia. E ele me escolheu como uma das estudantes do ano. Os meus pais eram militantes do movimento negro e eu tinha passado muito bem qualificada para o Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Naquela época, as crianças negras não costumavam ser destaque em colégios considerados de qualidade no Rio, como era o Instituto de Educação. E eu passei em sétimo lugar. 

O Pedro Jorge sabia que eu era ligada ao movimento dos meus pais, que batalhavam para a criação do Renascença Clube, frequentavam o Teatro Experimental do Negro do Abdias Nascimento, eram fãs e colaboradores da orquestra do maestro Abigail Moura, participavam de toda a movimentação nos anos 50 do pessoal negro no Rio de Janeiro. E aí ele me convidou para participar do programa Tarde Estudantil como pianista. Era um programa da Rádio MEC de estudantes universitários e secundaristas.

Então você começou como pianista? 

Comecei como pianista. Mas no Instituto de Educação, a gente tinha a Associação Metropolitana de Estudantes Secundários. A gente tinha uma consciência muito grande da política nacional, a gente se empolgava com a história da reforma agrária. E eu comecei a escrever no Tangará, que era o nosso jornal dos estudantes secundaristas. Também passei a escrever para o jornal O Metropolitano, que era voltado para os estudantes universitários. 

E depois o pessoal da Rádio MEC começou a se interessar pelas minhas poesias. Eu já escrevia poesia para a Revista Ciência Popular. Eu tive uma formação muito voltada para a arte. Tive uma infância muito estimulada para o campo das artes. O meu pai me levava para todos os concertos para a juventude. Domingo era religiosamente sagrado ir à feira em Vila Isabel, mas antes ele me levava para assistir os concertos para a juventude no Theatro Municipal.

O Origens é um dos programas que marca a sua trajetória. Como ele foi pensado? 

Em 1963, eu fui efetivamente contratada. E aí eu passei a ser técnica de Comunicação Social. Toda quinta-feira eu tinha programação, e, mais tarde, comecei a fazer os meus próprios programas. Eu comecei com o Mundo da Criança, porque eu já era professora primária e  tinha feito uma série de livros nos anos 70. Quando eu me formei em Pedagogia, eu fui junto com o Frei Davi fazer um trabalho de rádio educativo com o pessoal do Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização, órgão criado pela ditadura militar]. E aí a gente começa a achar brechas para atender a comunidade preta e pobre. E eu fiz o programa Mundo da Criança. Eu buscava fazer na Rádio MEC o que eu tinha feito nos meus livros infantis, mostrando para a criança a importância da natureza. Depois, tivemos uma série com o personagem Bentinho Benedito. O Luiz Carlos Saroldi, que era muito meu amigo, era da Rádio Nacional. Depois foi da Rádio JB [Jornal do Brasil]. Eu pedi a ele para criarmos uma história que falasse de um menino negro criado pela avó, que era de terreiro. E que retratasse o negro como um artista plástico e não como músico, para sair do estereótipo. Vocês não imaginam o quanto eu sofri com a Editora Bloch porque os ilustradores não queriam pintar crianças negras. E também teve a série sobre o dia a dia, onde valorizamos o lixeiro, a empregada doméstica, as pessoas que plantam e que colhem. 

Mais tarde eu passei para o programa Faixa Autoral, na medida em que eu estava muito ligada à divulgação da música preta brasileira. Depois, como eu estava muito interessada na educação, veio o Origens. Nele, coloquei no ar pessoas que não estão mais entre nós como é o caso de Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos e Oliveira Silveira que deu a sugestão para que o 20 de novembro fosse o Dia de Zumbi. E eu transplantei os contos do Mestre Didi, que são incríveis. Inclusive foi ele quem fez a vinheta do Origens. É ele tocando e cantando. E eu radiofonizei os contos com a equipe de radioteatro. Quem era essa equipe? Nicette Bruno, Paulo Goulart, Fernanda Montenegro e Myriam Pérsia. Vocês não imaginam a qualidade. Eles depois vão para a TV Tupi. Era uma rádio que dava visibilidade aos artistas. 

Na Rádio MEC, a gente tinha contato com os poetas. Walmir Ayala, Vinícius, todo mundo era presente na Rádio MEC. A gente tinha o programa de jazz do Paulo Santos, a gente tinha uma relação muito íntima com todo o movimento cultural. No Samba na Palma da Mão, eu levei Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Aluisio Machado e Dona Ivone Lara que gravou pela primeira vez na Rádio MEC. Todos os grandes sambistas do Rio de Janeiro passaram pelo programa. Eu tinha facilidade de convidá-los porque eu estava casada com o Nei Lopes. Eu comi feijoada feita por Clara Nunes, morram de inveja. Uma pessoa linda, maravilhosa. 

Mas olha a importância de manter a memória da Rádio MEC. Ela é o princípio de tudo. Criou muitos projetos de qualidade. Veja o nosso trabalho incrível nos anos 70 no projeto Minerva, buscando dar consciência crítica através dos programas radiofônicos que eram distribuídos para todo o Brasil. Eu fui coordenadora nacional do projeto. Fomos reconhecidos pelos ingleses.   

Esse projeto também recebeu algumas críticas e chegou a ser apelidado de “projeto me enerva”. Como você avalia essas críticas? 

O que a gente estava fazendo? A gente estava vendo a necessidade do país de crescer e pensar criticamente. A quem interessa isso? E a quem não interessa isso? 

Chegou a sofrer alguma interferência do regime militar? 

Olha, eu fui na Alemanha e lá eu vi algo que eu quis fazer aqui. O caderno de acompanhamento de conteúdo do Projeto Minerva era vendido nas bancas pela Editora Abril. Eu queria distribuir gratuitamente pelos jornais. A ideia era que os jornais pagassem taxas menores ao governo em troca de espaço para um suplemento. Eu fui mexer com a Editora Abril. Ela ganhava muito dinheiro vendendo esses cadernos. E aí depois de um tempo me tiraram de lá. Fiquei doente. Fiquei dois meses de cama. Eu sempre amei o Projeto Minerva. 

Podemos dizer que seus programas na rádio articulam sua formação artística e política? 

A minha vida de pianista, de professora, de militante política e de militante do movimento negro está completamente relacionada. Papai e mamãe eram sócios da orquestra do maestro Abigail Moura. Foi a primeira orquestra voltada para tradição musical africana. Ele usava instrumentos africanos. E quem eu encontro na Rádio MEC que era uma figura presente na minha vida de filha de um militante: o maestro Abigail Moura. Ele consertava os instrumentos da Rádio MEC e ensaiava a orquestra afro-brasileira lá na Rádio MEC. Então, eu fechei os meus laços de amizade com o maestro Abigail Moura e conheci uma pessoa incrível na minha vida que se chama Haroldo Costa. 

Ao mesmo tempo, a minha mãe havia passado no concurso para os Correios e Telégrafos e trabalhava como intérprete de inglês na Praça Mauá. Era vizinha do edifício A Noite, onde funcionava a Rádio Nacional. E ela faz amizade com o pessoal da Rádio Nacional. Ela conheceu um jovem que trabalhava como empregador de correspondência que ela adota como se fosse filho. E ela estimula esse menino que é o Hermínio Bello de Carvalho. Então, desde muito cedo, eu fui criando relações que estão ligadas com o movimento negro, com a música popular brasileira e com uma consciência política do nosso país. 

E como você avalia a importância do rádio para o país? 

No rádio, você não mostra as coisas, você deixa as pessoas imaginarem. Você desenvolve a intuição. Você estimula a reflexão das pessoas. A televisão te chapa um negócio e é aquilo que você viu e acabou. Historicamente, o rádio foi fundamental para a formação do país. Dona Helza Camêu me ensinou muito cedo que o Brasil no século 19 falava tupi-guarani. E foram as rádios que criaram uma unidade em torno do idioma português em um país continental como o nosso. Principalmente a Rádio MEC e a Rádio Nacional. E a Rádio Roquette-Pinto também. 

Eu fui à Espanha, onde há grupos separatistas, como os bascos. Na Itália, há uma série de divisões linguísticas. Eu fui em vários países africanos onde não há uma unidade. Inclusive vi uma experiência muito linda no Senegal. Você sabe que lá eles falam aproximadamente sete dialetos. Então, quando a criança entra na escola, ela não se comunica da mesma maneira que a outra. E essas crianças têm um ano para aprender a falar e escrever em francês, que é a língua obrigatória do país. Eles montaram uma estratégia incrível. Reuniram professores doutores pela Sorbonne para trabalhar na alfabetização. Eles fizeram uma seleção dos contos mais populares no Senegal, que são conhecidos diferentes dialetos. Traduziram para o francês e desenvolveram teatro para essas históricas. Eu vi. As crianças vão ouvir essas histórias em francês. Só que elas conhecem essas histórias. São da sua realidade. Eu fiquei pensando: eles usam o método Paulo Freire lá e a gente não usa aqui. E uma coisa mais interessante ainda. Eles usam músicas deles. E colocam letras francesas. É um transplante que facilita a compreensão das crianças. Em um ano, eles conseguem alfabetizar. 

Você também foi, por três anos, jurada do Prêmio Nacional Jornalista Abdias do Nascimento, criado pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro. Como foi essa experiência? 

É um trabalho incrível de premiar jornalistas que realmente contam para a gente a verdade da vida. Eu acho absolutamente necessário, porque eu acho que a grande responsável do atraso brasileiro é a mídia. A gente tem uma mídia que valoriza a mentira. 

A Rádio MEC é vinculada hoje à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), fundada em 2007 dentro de um esforço de estruturação do campo público da comunicação. Como você avalia esse processo? 

Esse debate é básico. Não pode deixar nas mãos de interesses particulares algo que é de interesse público. Você vê o que o Twitter está fazendo. Estão permitindo até compartilhamento de ameaças de ataque às escolas. É comandado por um homem que tem trilhões de dólares. Há uma falta de ética. Desde sempre eu aprendi que o teu limite acaba onde começa o limite do outro. É preciso parar e pensar. Ouvir e escutar. A rádio nos permite isso. E a rádio pública não tem dono. Ela é de todos. A partir do momento que ela tem conhecimento dessa sua característica, ela não vai ser uma rádio que vai te levar para uma dada religião, que vai te levar para um dado partido. Ela não pode ser esse tipo de rádio. Ela tem que ser diversa. Ela tem que ser plural. Ela tem que ser democrática.

Agência Brasil

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