Municipal do Rio reabre com cheiro de rato morto, palco perigoso e sem cortina
Nos dias das apresentações, o caos se instalou lá fora. O sistema de bilhetagem eletrônica havia pifado, longas filas se formaram -e muitos saíram com as mãos abanando
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – De portas fechadas há quase dois anos por causa da pandemia, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro reabriu, no fim do mês passado. As apresentações dos balés “Paquita”, de Ludwig Minkus e Marius Petipa, de 1846, e “Noite de Walpurgis”, da ópera “Fausto”, de Gounod, de 1859, causaram a impressão de que o local ofereceria ao público uma nova temporada lírica.
Nas coxias, porém, funcionários se queixavam das condições de trabalho. Sem um palco bom para amortecer piruetas, bailarinos correm risco de contusões há quatro anos. Problemas estruturais se agravaram durante a pandemia. Os camarins estão depredados, a cortina, rasgada, e os dutos de ar-condicionado, imundos.
A atual presidente da Fundação Theatro Municipal, Clara Paulino, confirmou a precariedade do prédio, mas conta que os processos de licitação já foram abertos, visando a melhoria das condições de trabalho. “Estou no cargo há nove meses. Quando cheguei, havia 42 processos de licitação abertos. Eles estão tramitando. Estou tentando resolver as questões”, afirmou. Já Aldo Mussi, seu antecessor, afirmou que a pandemia impediu a importação do piso.
A reportagem ouviu relatos de quatro integrantes dos três corpos artísticos do Municipal -balé, coro e orquestra. Temendo exonerações, os funcionários pediram anonimato.
De acordo com um bailarino, o palco precisa, há quatro anos, de um novo piso, feito de um material capaz de amortecer saltos. Com uma inclinação de 4,5 graus e diversas irregularidades, o palco do Municipal atrapalha coreografias e causa acidentes. Desde 2019, quando a situação se agravou, três integrantes do corpo de baile tiveram lesões crônicas.
Outro funcionário lembrou que, no fim daquele ano, Mussi entrou em um acordo com os corpos artísticos -toda a renda do balé “Coppélia”, encenado em setembro, seria destinada à reforma.
Somando o dinheiro da bilheteria com outros rendimentos, Mussi arrecadou US$ 68 mil dólares -cerca de R$ 272 mil à época- para a compra do “sprung floor”, espécie de amortecedor. Após o contato do Municipal, a empresa Harlequin, fornecedora do produto para os principais balés do mundo, enviou o orçamento, em 23 de janeiro de 2020, referente ao modelo Liberty Latch Loch, que poderia ser usado de forma permanente ou portátil. O piso nunca chegou, já que Mussi não efetuara a compra, deixando o cargo no início deste ano.
Os funcionários ouvidos pela reportagem afirmam não saber o paradeiro dos US$ 68 mil, assim como Mussi. “Com a pandemia, a importação não aconteceu, o piso não foi comprado”, lembra. Segundo ele, o valor foi depositado em uma conta, sob os cuidados da administração financeira do teatro. Paulino alegou não ter ciência sobre a arrecadação.
Para a volta ao presencial, cada corpo artístico adotou um procedimento. Seguindo um decreto estadual, o regente do corpo de baile, Hélio Bejani, determinou a retomada em 16 de agosto. No entanto, o bailarino afirmou que os protocolos sanitários, formulados com a Fiocruz, não foram adotados.
Ele relata que os profissionais não eram testados, não havia álcool em gel, distribuição de máscaras e, hoje, alguns funcionários não vacinados circulam pelo teatro.
Paulino contesta o relato. “Todos os protocolos, incluindo máscara e distanciamento, são seguidos. No caso da orquestra, colocamos até acrílico por causa dos instrumentos de sopro”, diz.
Na reabertura, os músicos não tocaram. Temendo um levante, a direção preferiu tocar uma gravação. Nas apresentações, apenas sete bailarinos do corpo de baile dançaram. A maioria nem sequer assistiu aos espetáculos, protagonizados em sua maioria por jovens da Escola Maria Olenewa. De acordo com o bailarino, a ausência dos artistas é um protesto. Os sanitários dos camarins estão entupidos, não há papel higiênico, e os próprios artistas colocam sabão líquido em garrafas de plástico.
Nos dias das apresentações, o caos se instalou lá fora. O sistema de bilhetagem eletrônica havia pifado, longas filas se formaram -e muitos saíram com as mãos abanando.
Por falta de segurança, o coro ainda não retomou o trabalho presencial. Os coristas produzem vídeos, publicados no YouTube. Já a orquestra se reúne no teatro pontualmente, em caso de gravações, como contou um instrumentista. Funcionários tentam suprir as necessidades como podem.
Hoje, ao menos 13 processos de licitação tramitam, a maioria desde o ano passado, sem a efetivação de nenhum serviço. Os pedidos incluem o oferecimento de álcool em gel, contratação de mais faxineiros e desratização.
Segundo um corista, os dutos do ar-condicionado exalam um odor de ratos mortos. O sistema de refrigeração é composto por quatro aparelhos, mas só um funciona. A falta de manutenção gera risco de incêndio para o prédio, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1973. “Quando assumi o teatro, o ar não tinha manutenção havia 11 anos. Não tinha nem extintor, agora colocamos”, disse Paulino.
No anexo do prédio, onde ficam as dependências dos corpos artísticos, existem quatro elevadores. Apenas um funciona. Na sala de espetáculos, são seis -nenhum funciona.
Após denunciar os problemas à presidência do Municipal, a servidora Marisa Assumpção, que trabalhava havia 30 anos como arquiteta, foi exonerada no final de outubro. Ela preferiu não se pronunciar. Paulino afirmou não ter exonerado a arquiteta, que teria sido apenas reconduzida ao Instituto Estadual de Engenharia e Arquitetura.
Em relação ao palco, o sistema eletrônico apresenta constantes defeitos há seis anos. Segundo o corista, os cinco elevadores cênicos não funcionam, e os holofotes têm risco de queda. Em 2019, o controle chegou a ser roubado. No fim do ano, um laudo atestou graves problemas no sistema da firma Waagner Biro, que precisa de manutenção a cada mês.
O teatro não dispõe de renda para tanto. Nem sequer tem cortina. O pano amarelo usado é herança da visita do papa Francisco em 2013.
Segundo o bailarino, a cortina vermelha rasgou e, há cinco anos, apodrece na central técnica. “Estive na última quinta com um representante da Waagner Biro no teatro. Já fizemos um projeto para a manutenção do palco. Abrimos frentes, mas há um pacote de problemas”, admitiu Paulino.
Para os funcionários, uma reabertura esbarra nos desfalques nos corpos artísticos e a falta de estrutura do palco.
O último levantamento da fundação revela que seriam necessários 120 cantores. Apenas 77 cantam, e 15 estão se aposentando. Na orquestra, o número ideal é de 115 instrumentistas -há apenas 50. Já no balé, somente 15 bailarinos dançam, enquanto deveriam ser 107. Novos concursos resolveriam o problema.
“Os concursos são extremamente necessários. A realização deles está sendo analisada na Divisão de Recursos Humanos”, disse a presidente.
Durante a retomada, o instrumentista ainda se queixa do diretor artístico e maestro, Ira Levin, passar a maior parte do tempo fora do Rio de Janeiro, regendo outras instituições.
Levin disse que luta para salvar a instituição, de onde teve de se afastar durante a pandemia. Mesmo assim, afirma ter elaborado toda a programação do Municipal.
“Eu comprei agora na pandemia um apartamento no Rio, mas ainda está em obras”, afirmou. Até 14 de novembro, porém, ele rege a ópera “Os Sete Pecados Capitais”, no Theatro São Pedro, em São Paulo. “Não aceito nenhuma crítica”, ele acrescentou.