Cidade de SP registra 700 mil casos de Covid a mais do que o estado aponta para capital
O governo aponta um número na capital, a prefeitura diz que o total é muito maior e ambos não se entendem sobre a definição dos registros
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quantos casos de Covid foram notificados na capital de São Paulo, na segunda-feira (24), véspera do 468º aniversário da cidade? Depende. Pelos dados estaduais, foram meras 189 infecções no maior centro urbano do Brasil. Mas, no boletim municipal, há um acréscimo de 14.394 pacientes contaminados.
O governo aponta um número na capital, a prefeitura diz que o total é muito maior e ambos não se entendem sobre a definição dos registros. O problema foi contado recentemente em reportagens da Folha de S.Paulo e, inicialmente, do G1.
Essa disparidade, no entanto, é antiga. Segundo dados abertos das duas administrações analisados pela Folha de S.Paulo, a discrepância vem desde 2020 e já representa uma diferença acumulada de 716 mil casos.
A diferença percentual mínima foi observada em agosto de 2020, defasagem de 23%. Em outras palavras, a cada 100 diagnósticos da prefeitura da capital paulista àquela altura, o governo só contabilizava 77.
A assimetria cresceu, passando dos 30% naquele ano. Em outubro de 2020, a prefeitura reportava 100 mil casos a mais do que os divulgados pelo estado relativos à capital.
A divergência voltou a se acentuar no fim de 2021 e agora chegou a 42%, em uma crescente possivelmente associada à rápida disseminação da ômicron.
Em janeiro, a prefeitura já empilhou quase dez vezes mais registros (126 mil) do que os casos confirmados pelo estado para a capital (13 mil).
No acumulado da pandemia, a cada 100 contaminações notificadas pelo município, o governo considera só 58.
O estado diz que a capital paulista tinha 991.062 casos de Covid até a última segunda. Os dados da prefeitura apontavam 1.707.680 pessoas infectadas. Para óbitos, porém, a diferença entre os dados das duas fontes é insignificante, cerca de 0,08%.
Já a enorme diferença na contagem de casos é comparável ao total de infecções registradas por Pernambuco na pandemia: 682.805, segundo o consórcio de veículos de imprensa.
No Brasil, todo caso de Covid é de notificação compulsória. A fonte dos dados do estado e do município são os sistemas e-SUS e Sivep-Gripe, do Ministério da Saúde. Os casos mais leves de síndrome gripal vão para o primeiro e os graves, para o segundo.
Pesquisadores ouvidos pela reportagem afirmam que uma diferença dessa magnitude pode impactar no planejamento de políticas públicas, além de passar uma percepção de risco imprecisa à população.
“Qual dado você vai usar para fazer política pública?”, questiona Leonardo Bastos, pesquisador da Fiocruz e do Observatório Covid-19 BR.
Bastos nota que os dados do Sivep para o estado (informações que o ente estadual passa para o Ministério da Saúde) apontam uma pequena subida de internações por Srag (síndrome respiratória aguda grave, que pode ser causada por Covid ou gripe, por exemplo). É um fenômeno diferente do ritmo mais acelerado do resto do país.
Enquanto isso, na capital paulista, segundo os dados estaduais, há uma espécie de platô (estabilização) desde meados de 2021.
Uma subida recente acentuada da curva de casos é observada somente nos dados disponibilizados pelo município.
Assim, essa não subida da curva estadual para os dados da cidade seria um possível indício de erro nos números da gestão Doria (PSDB), diz Bastos.
Diferenças entre dados de estados e municípios não são raras. Diferentes horários de acesso e extração das informações, falta de limpeza nos dados (contagens duplicadas), entre outros fatores, poderiam explicar parte das divergências. Esses problemas, contudo, não levam em geral a discrepâncias tão significativas, dizem especialistas.
Nem o apagão de dados, em dezembro, do Ministério da Saúde explicaria a situação, que já vem desde o início da pandemia.
Procurados pela reportagem, prefeitura e governo do estado não esclareceram o que pode levar ao problema.
“Não é uma subnotificação. É uma defasagem. Há uma montanha de casos que não vieram à tona, que os algoritmos do estado não conseguiram detectar”, avalia Wallace Casaca, coordenador da plataforma SP Covid-19 Info Tracker, de pesquisadores da USP e da Unesp.
Casaca diz, por exemplo, que os casos notificados por 92 prefeituras paulistas que o projeto Info Tracker acompanha apontam 426.441 infecções de 1º a 25 de janeiro de 2022. Já os dados que o estado mostra para essas 92 cidades, no mesmo período, somam 122.808 casos.
“Todas as medidas [estaduais] foram tomadas em cima de dados defasados”, critica Casaca.
Desencontros profundos como o da capital não são padrão. Levantamento feito pela Folha de S.Paulo com base nos boletins municipais e estaduais mais recentes indicam que as diferenças variam entre 0% e 5% para mais ou para menos na maioria das capitais.
Em Salvador, única capital, fora São Paulo, que tem dados abertos de contaminações, a diferença entre os dados que o governo baiano aponta para a cidade e que o município notifica era de somente 1.370 infecções, num universo de mais de 250 mil casos (0,5%).
Até a última segunda, a disparidade era inferior a 1% em Vitória, João Pessoa, Aracaju, Belo Horizonte, Recife, Cuiabá, Rio de Janeiro, Belém e Fortaleza. De todas as 20 capitais com dados atuais disponíveis, só Curitiba (32%) e Natal (60%) apresentam disparidades inesperadas como a de São Paulo.
Wesley Cota, pesquisador da UFV (Universidade Federal de Viçosa), diz que não chega a se surpreender com a situação. Em análise semelhante, observou diferença de mais de 1 milhão de casos notificados pelos municípios paulistas e não computados pelo estado.
“[Precisamos] pelo menos ter uma explicação”, diz Cota. “Tem que ser uma coisa transparente. Já são dois anos e até agora eles não resolveram e não sabem nem explicar o que está acontecendo.”
Há algumas semanas, em entrevista à Folha de S.Paulo, Tatiana Lang, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica estadual, admitiu que a diferença entre os dados havia sido observada e que os técnicos trabalhariam para ajustes.
A reportagem entrou em contato com as secretarias de Saúde municipal e estadual de São Paulo para que comentassem as divergências nos números. A secretaria da capital reafirmou que seus dados estão corretos e que segue os critérios de notificação do Ministério da Saúde.
“A SMS [Secretaria Municipal da Saúde] esclarece ainda que, rotineiramente, é revisada a metodologia de processamento de dados na classificação dos casos de Covid-19 e síndrome gripal da capital e não foram encontradas inconsistências nas notificações”, diz a secretaria, em nota.
A reportagem perguntou para o estado o que, especificamente, explicaria uma diferença como a apontada pela reportagem. A secretaria de Saúde não respondeu diretamente à pergunta, mas afirmou que “mantém diálogo constante com os municípios” e que os “casos e óbitos são inseridos nos sistemas oficiais pelos municípios e o estado realiza apenas a extração dos dados”.
“A pasta se reuniu com profissionais do Ministério da Saúde e informa que todos os scripts utilizados estão passando por revisão para identificar possíveis alterações no comportamento dos dados ou eventuais imprecisões que possam impactar na contabilização de casos”, disse ainda em nota.